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       Memorial
       Ausências na falta de ar de um suspiro, numa lembrança perturbadora esquecida, num engasgo seco sem saber o porquê. Perdas inconsequentes, inconsoláveis, revoltantes... ou justas, provocadas, inevitáveis. Reencontros perplexos com o que quase se foi mas que nem nos dávamos conta que iam; nem sempre se referem ao fim físico: podem ser pensamentos que se perdem, se frustam, ou objetos que somem apenas para nos fazer perceber seu valor. São seres em forma de sinais, gentes que nos fantasmeiam tornando-se personagens de cacos, em rostos apagados, esvaindo-se em riscos e manchas, suas sombras, marcas, pegadas, baixos-relevos, singelos ou megalomaníacos monumentos à sua honra. Imagens que não são nossa família, amigos, colegas, são ninguém; mas nos querem dizer, querem que o artista lhes dê voz, os eternizem, os revelem, alumiem. Fotografar para dar-lhes a vida eterna, a paz numa sub-leitura de seus resquícios, riscos, seus ruídos, chagas, seu flare. Não lhes darei descanso, não os tirarei do esquecimento por tê-los documentado, catalogado e fichado, mas por ceder-lhes uma fração de segundo do ato criativo deste estranho operador de fótons, um quase-anônimo neste teatro de sombras silentes que luta em vão pela conquista do foco num momento mágico que julga fazer por merecer. 

       ‘Ausências’ não é um gênero (arquitetura, retrato, paisagem etc) que pré-defini arbitrariamente para fotografar, não é um tema ou uma técnica, sequer um conceito fechado de fora pra dentro. A série é o resultado de uma autocuradoria de acervo que foi sendo percebido lentamente em meu arquivo anos após, em imagens fora do propósito prático daquele dia. Não pautei-me para buscar esse ruído, encontrei-o no caos dos fragmentos entre pautas comerciais; hoje, seria incapaz de propor-me uma continuação, uma complementação. O trabalho foi descoberto, pois velado estava.
       Nestas imagens sem crédito dos sujeitos, fotografei como um vulto em busca de sombras que não me assombram. Os ausentes não estão presentes visualmente, a fotografia prescinde disso: fiz transparecer a ausência em suas camadas. Não há referências pessoais, não sou Eu… somos Nós sendo desatados, libertados. Retratos concretos em papel, ou mesmo feitos de vazio, pois isto é de fato a única coisa que há de sobra em nossa humanidade; as cópias químicas mentem dizendo haver mais cor do que branco, mais núcleo do que eletrosfera, e minha intenção é agir dentro de cada espectador sugando-o para dentro do vazio das interrogações que proponho, para gravar em cada um as imagens que capturei em cena que testemunhei, e fazer a imagem e o espectador Um, quero que metam a cara de peito aberto dentro das imagens, amarrem suas tripas e não vejam lugares, nomes, não vejam o enquadramento, a cor, percam a perspectiva e não procurem o autor... apenas refotografem estes retratos com o coração, ou ainda melhor, com as artérias e veias aquilo que num ocaso esbocei de caso perdido com o acaso.
       Reconhecimentos dos mundos esquecidos que tornei visíveis por essa apropriação do real (o recorte fotográfico e seu consequente descarte de função) e pela intra-contextualização (a estrutura mecânica do ensaio, em sequência de dípticos): cada imagem é envolta em molduras virtuais que lembram os retratos antigos, com o fim de distanciar os referentes imediatos do inconsciente coletivo.
       Ver com olhos da alma (em contraposição a apenas enxergar interpretações prontas) é um aprendizado que resulta numa compreensão da realidade livre de significados marcados pela indústria e seus interesses mercado(ideo)lógicos, além de –creio ser o principal– fazer o espectador parte fundamental do mundo que o rodeia; imagens não são só pra entreter como uma realidade descolada e alegórica do referente, são a própria verdade desde que vista de dentro pra fora e não imposta pelo operador da ferramenta de documentação.
 

1996–2011 | Impressão UV sobre MDF | díptico | 90×120cm | Edição de cinco.

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